Série da Globo homenageará rionegrense que salvou judeus do nazismo

Por Assessoria - 11/08/2020
Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa em seu apartamento em Copacabana, em 1992. Imagem: Luciana Whitaker/Folhapress

A primeira série totalmente em inglês da Globo, em parceria com a Sony Pictures Television (SPT), ainda em fase de gravação, deve reavivar a curiosidade sobre o pouco conhecido papel de uma brasileira na concessão de vistos de entrada no país a judeus acossados pelo nazismo.

A produção, intitulada O Anjo de Hamburgo, é inspirada na vida de Aracy Moebius de Carvalho Guimarães Rosa (1908-2011), funcionária do consulado do Brasil em Hamburgo, Alemanha, de 1936 a 1942.

Vivida pela atriz Sophie Charlotte na tela, a Aracy da vida real levou existência discreta. Ao retornar da Alemanha, depois da ruptura de relações diplomáticas germano-brasileiras, em 1942, fixou residência no bairro paulistano de Perdizes. A partir de 1944, viveu em Copacabana, no Rio de Janeiro, num apartamento com vista para o Arpoador, ao lado do segundo marido, o escritor e diplomata João Guimarães Rosa (1908-1967). O casal havia se encontrado em Hamburgo, onde Rosa servira como cônsul de terceira classe por quatro anos.

O Anjo de Hamburgo é livremente baseada no livro Justa ‒ Aracy de Carvalho e o resgate de judeus: trocando a Alemanha nazista pelo Brasil (2011), de Mônica Schpun, hoje professora do Centro de Pesquisas sobre Brasil Colonial e Contemporâneo, na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França.

A obra teve direitos adquiridos pela produção e consta dos créditos como fonte da série. A autora informa que tomou conhecimento da história de Aracy em 2005, enquanto preparava um seminário sobre migração internacional na EHESS.

“Lendo a bibliografia sobre migração judaica em São Paulo, reparei uma passagem muito rápida dizendo que a segunda esposa do escritor Guimarães Rosa tinha ajudado os judeus a deixar a Alemanha e era uma justa. Fiquei muito interessada e fui atrás. Por coincidência, naquela época, os arquivos dela tinham sido doados ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da Universidade de São Paulo (USP), onde já estava a coleção de Rosa”, afirma Mônica.

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Em Rio Negro há uma biblioteca que homenageia Aracy

Com Alzheimer no final da vida, Aracy não pôde dar entrevista à historiadora. Morreu aos 102 anos, no mesmo ano em que Justa chegou às livrarias.

Até a velhice, a mulher que inspirou a heroína de O Anjo de Hamburgo foi mais conhecida como a destinatária da amorosa dedicatória de Grande sertão: veredas, romance publicado por Guimarães Rosa em 1958. “A Aracy, minha mulher, Ara, pertence este livro”, escreve o criador de Riobaldo e Diadorim.

A união foi interrompida pela morte precoce de Rosa, aos 59 anos, três dias depois da posse na Academia Brasileira de Letras que, supersticiosamente, adiara por mais de quatro anos.

Depois da publicação de Grande sertão, o apartamento no Arpoador tornou-se centro de peregrinação: repórteres, intelectuais, artistas, editores e tradutores passaram a ser recebidos em número crescente pelo casal.

Médico de formação e mineiro, Rosa conhecia desde 1932 o então presidente Juscelino Kubitschek, empenhado na construção de Brasília. O país respirava novos ares com a proliferação de movimentos literários e artísticos: neoconcretismo, Cinema Novo, bossa nova, Centro Popular de Cultura.

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Com o golpe civil-militar de 1964, o casal envolveu-se em reuniões de intelectuais para auxiliar perseguidos como o jornalista e crítico Franklin de Oliveira.

Com a morte do marido, Aracy recolheu-se. Voltou a atrair atenção em 1982 ao ser homenageada por Israel como Justa entre as Nações, título reservado a não judeus que se arriscaram para salvar judeus da perseguição hitlerista. No Brasil, foi a única mulher a receber a honraria.

Além dela, o embaixador Luiz Martins de Souza Dantas (1876-1954) também foi reconhecido por emitir mil vistos para o Brasil a judeus na França entre 1940 e 1942, quando a ditadura do Estado Novo proibia a concessão desse benefício a “semitas e outros indesejáveis”.

A revelação do papel de Aracy surpreendeu até mesmo familiares. “A gente só ficou sabendo que minha avó teve esse papel tão importante muito depois. Ela era muito reservada, lacônica, introspectiva. Não falava do assunto”, afirma Beatriz Tess, professora da Faculdade de Medicina da USP, terceira dos quatro netos de Aracy.

Discrição, no caso de Aracy, não significava indiferença pelos descendentes. A partir do final da década de 1960, ela cumpria um ritual a cada Natal: passava as festas de final de ano em São Paulo, com a família do filho, o advogado Eduardo Carvalho Tess, e, no início de janeiro, levava Beatriz e sua irmã caçula, Vera, para o Rio.

“Depois que Rosa morreu, minha mãe incentivava minha irmã e eu a ir para o Rio com minha avó. Era uma forma de não deixá-la sozinha e também de aliviar o cuidado com quatro filhos, que é intenso. Viajávamos de ônibus ou de trem e passávamos praticamente dois meses inteiros no Rio. Só deixamos de fazer isso quando éramos adolescentes”, relembra Beatriz.

Beatriz lembra da avó como uma mulher de princípios morais rígidos.

“Ela nos dava dinheiro para comprar picolé na Avenida Nossa Senhora de Copacabana. Quando voltávamos, ela conferia o troco. Se estivesse errado, ela não deixava barato: ia até o sorveteiro e dava uma bronca. Era brava, eu tinha medo dela. Quando via algo errado, transformava-se”, recorda-se.

Aracy não recuava nem diante da temida polícia alemã. “Meu pai contava que ela era capaz de colocar o dedo em riste para conversar com os nazistas. ‘Quem você pensa que é? Eu sou do consulado brasileiro.’ Quando imaginava que havia injustiça ou enganação, realmente dava lição de moral à frente de todos, falando alto”, relata a neta.

Nascido em 1929, Eduardo Tess não pôde dar entrevista por razões de saúde.

Beatriz recorda-se de Aracy como alguém à frente de seu tempo. “Ela era muito sistemática. Tínhamos de acordar nas férias, às 6h30min, para estar na praia às 7h. Ela lia em revistas europeias que só se devia tomar sol até 10h porque, depois disso, havia risco de se desenvolver câncer. Isso só veio a se consagrar na nossa cultura muito mais tarde”, diverte-se.

Com mais de 60 anos, Aracy ia à praia com biquíni de duas peças. “Era um biquíni reservado, com parte de baixo alta, até a cintura, mas chamava atenção”, diz a neta. O cuidado com a aparência mantinha-se mesmo na intimidade.

“Se ela precisasse descer à portaria do prédio para receber uma encomenda, estava sempre impecável, com batom e sandália de salto.”

Aracy Moebius de Carvalho nasceu em 5 de dezembro de 1908 em Rio Negro, distante 109 quilômetros de Curitiba, onde a família, residente em São Paulo, estava de passagem.

A mãe, Sidonie Moebius de Carvalho, nascera em Halle, na Alta Saxônia, Alemanha. O pai, Amadeu Anselmo de Carvalho, era um comerciante luso-brasileiro que, mais tarde, seria dono do Grande Hotel de Guarujá. A menina cursou o primário e o ginásio em escolas religiosas paulistanas.

A jovem casou-se com o alemão Johann Eduard Ludwig Tess em 1930. O casal teve um único filho, mas a união não durou.

Em 5 de março de 1934, Aracy embarcou com o menino para Hamburgo, na Alemanha, a fim de residir na casa da tia, Lucy Luttmer, irmã de sua mãe, e do marido dela, Dietrich. Um ano depois, retornou ao Brasil para formalizar o desquite (o Brasil só instituiria o divórcio em 1977).

“Uma coisa salta aos olhos: Aracy era uma intrépida. Uma pessoa corajosa, não só pelo salvamento dos judeus, que é o clímax dessa história. Uma moça de 26 anos que, no Brasil tão provinciano e misógino dos anos 1930, se desquita, vira as costas e vai embora para a Alemanha com um menino de cinco anos. Tenta se virar e ganhar a vida sozinha, se adapta”, diz Mônica Schpun.

A chegada de Aracy à Alemanha coincidia com um período turbulento na história do país. Adolf Hitler fora eleito chanceler (chefe de governo) da Alemanha pouco mais de um ano antes e não tardara em liquidar os vestígios da República de Weimar, como ficou conhecido o regime democrático constitucional instaurado após a queda da monarquia, em 1918.

No rastro da ordem fascista em vigor na Itália sob Benito Mussolini, a Alemanha, assim como outros países, caminhava rapidamente em direção ao totalitarismo.

Frontalmente oposta ao comunismo e à União Soviética, a ideologia dos novos donos do poder pregava a supremacia de uma mítica “raça ariana”, da qual os alemães seriam expoentes, purificada de judeus, eslavos e outras “raças inferiores”.

Em 1933, quando Hitler chegou ao poder, havia cerca de 500 mil alemães de origem judaica no Reich. Eram uma minoria tradicional e assimilada, pela qual Goethe, Lessing e Humboldt nutriam admiração.

A Alemanha havia sido o centro da Haskalá (Iluminismo, em hebraico), movimento modernizador do século 18, influenciado pela Revolução Francesa, que pregava a integração dos judeus à cultura laica europeia.

Era um ambiente muito distante do vivido pelos Ostjuden (judeus orientais) na Polônia e na Rússia, na maioria restritos ao shtetl (aldeia), falando iídiche e com severas dificuldades de acesso a escolas, universidades, profissões liberais ou carreiras no serviço público.

Alguns dos mais proeminentes políticos, empresários, médicos, advogados, professores, cientistas e artistas alemães dos séculos 19 e 20 eram judeus ou tinham origem judaica.

Como não havia entraves à mobilidade social dos judeus, eles estavam em toda parte; e, por estarem em toda a parte, era ainda mais irracional culpá-los pelos males da Alemanha.

Ao chegar ao governo, Hitler e os nazistas seguiram por algum tempo o mesmo padrão adotado enquanto foram um pequeno partido oposicionista de extrema-direita: promovendo campanhas, montando operações de provocação, organizando ataques coordenados contra alvos visíveis como pequenos negócios.

Em 1º de abril de 1933, os nazistas lançaram um boicote a empresas judaicas, que deu pouco resultado.

Em 7 de abril, funcionários públicos que não comprovassem origem ariana foram exonerados (embora veteranos da Primeira Guerra e seus parentes tenham sido poupados a pedido do presidente Paul von Hindenburg), e logo judeus foram igualmente proibidos de exercer advocacia e magistratura ou de, como médicos, atenderem pacientes não-judeus.

Em 1935, as Leis de Nuremberg transformaram os judeus em párias. Casamento ou relações íntimas entre “arianos” e judeus passaram a ser crime, e mulheres alemãs de menos de 45 anos não podiam ser empregadas por judeus.

Filha de alemã sem ancestralidade judaica, Aracy estava a salvo das leis que passaram a impor severas restrições à existência dos judeus alemães. Sua correspondência da época não registra maior desconforto com a situação. Em 1936, por ocasião dos Jogos Olímpicos de Berlim, Hitler refreiou demonstrações mais explícitas de hostilidade aos judeus para evitar críticas no exterior.

“Berlim está maravilhosa”, escreve Aracy à mãe em agosto daquele ano, de passagem pela capital.

Fluente em alemão, inglês e francês, ela obtivera no ano anterior uma nomeação como funcionária do consulado brasileiro em Hamburgo, indicada por um amigo da família ao ministro das Relações Exteriores, José Carlos de Macedo Soares, e assumira a vaga no mesmo mês em que escrevera à mãe.

Os vencimentos iniciais, de 20 libras esterlinas, segundo Mônica Schpun, permitiram-lhe mudar-se com o filho da casa da tia para um apartamento alugado no bairro de Mundsburg.

“O que a gente vai perceber é um deslumbramento de Aracy com o nazismo. Ela vê suásticas por todos os lados, soldados. O próprio filho dela, que foi para lá com cinco anos, vê e se aproxima de Hitler em uma das suas visitas a Hamburgo. Ela não tem noção das ações contra os judeus, das perseguições. É um mundo que ela vai descobrindo aos poucos”, afirma Maria Luiza Tucci Carneiro, professora aposentada da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP que atuou como consultora da produção de O Anjo de Hamburgo.

A historiadora, que idealizou o Arquivo Virtual sobre Holocausto (Arqshoah) da universidade, prepara o livro Hamburgo durante o nazismo, que focaliza a vida na cidade naquele período.

A situação torna-se mais dramática depois de 9 de novembro de 1938, com a Noite dos Cristais (Kristallnacht), quando ocorreu uma série de ataques contra indivíduos, associações, templos e empresas judaicas em todo o país em resposta ao assassinato de um diplomata alemão por um jovem judeu polonês na França.

Se antes a emigração era estimulada pelos nazistas (cerca de 150 mil judeus, ou 30% da comunidade, haviam deixado a Alemanha legalmente entre 1933 e 1938), as restrições aumentaram a partir da Noite dos Cristais.

Mônica Schpun pesquisou a trajetória de 16 indivíduos, incluindo dois casais com um filho pequeno cada, que foram atendidos por Aracy no consulado de Hamburgo.

“Fui localizando essas pessoas através de referências que encontrava nos arquivos. Alguns foi por bola de neve: um conhecia e me falou de outro, em alguns casos”, relata a historiadora.

No acervo de Aracy, havia pelo menos duas correspondências de migrantes que passaram pelo consulado.

“Encontrei documentação escrita de duas pessoas que agradeceram a Aracy depois que chegaram ao Brasil. Quiseram agradecer por escrito a ajuda que ela tinha dado. Isso encontrei nos arquivos dela. Fui atrás dessas famílias. As duas pessoas em questão já tinham falecido e os descendentes não conheciam essa história. Então, muitas vezes as entrevistas foram ao contrário: eles é que me entrevistavam”, diz Mônica.

É o caso de Hans Hochfeld, que desembarcou do navio Monte Pascoal no Brasil em 11 de janeiro de 1939.

Trazia um passaporte alemão com a letra J (de “judeu”, identificação obrigatória em documentos a partir de 1938). O documento continha visto temporário emitido pelo cônsul adjunto Guimarães Rosa e assinado pelo cônsul Antônio de Souza Ribeiro. Sua filha, Maria Julia Hochfeld, jamais ouviu-o pronunciar o nome de Aracy.

A única lembrança dessa época relatada por Hans, que morreu em 1991, era a da partida do navio no porto de Hamburgo.

“Ele se lembrava de avistar, do convés do navio, os pais que lhe acenavam. Foi a última vez que os viu, e seus olhos se encheram de lágrimas”, relata a filha.

No acervo de Aracy, há um cartão em que Hochfeld e o amigo que o acompanhou na viagem, Hans Brauer, enviaram à ex-funcionária do consulado.

“Estavam mandando flores a dona Aracy depois que ela voltou da Alemanha agradecendo o trabalho dela”, afirma Maria Julia.

“A ordem do governo brasileiro, por circulares secretas, já orientava que judeus cujo passaporte tivesse um J na capa ou que tivessem os nomes Sara ou Israel tinham de ser destacados, não podiam dar o visto. E aí acho que é o momento em que ela começa, sensibilizada com essa negação, a orientar a falsificar os passaportes”, diz Maria Luiz Tucci Carneiro.

Uma das sugestões de Aracy, segundo a historiadora, era que, ao encaminhar o pedido de visto, os migrantes fornecessem endereços de Hamburgo. “Com um endereço (de Hamburgo), mesmo que falso, seria mais fácil conseguir um visto do que se dissesse que morava na Polônia”, afirma.

“Lista de Schindler”

Os documentos do consulado de Hamburgo foram destruídos por Rosa, já então cônsul, e Aracy depois do rompimento de relações diplomáticas entre Brasil e Alemanha, em janeiro de 1942.

“É difícil falar quando ela liberou o primeiro visto. Temos apenas os documentos com cópias no Itamaraty. Esse risco que ela corre a partir de 1938, quando chega Guimarães Rosa e já um pouco antes, é algo de que ela tem plena noção porque ela está no meio daquele furacão das perseguições”, sustenta Maria Luiza Tucci Carneiro.

A historiadora diz que, diferentemente de outros casos de responsáveis por salvar judeus, como o empresário alemão Oskar Schindler (1908-1974), não há uma lista de beneficiados pela ação de Aracy.

“Não existe (no caso de Aracy) uma lista como a de Schindler, exatamente por ser uma atividade dentro do consulado. Como é que estamos chegando a essa lista? Através de testemunhos. Com isso, chegamos ao que eu falo que é uma lista em aberto. Nas entrevistas que fizemos do ano passado para cá já apareceram mais duas pessoas que receberam o visto graças a Aracy. A lista é uma lista em aberto, que eu chamo de ‘lista incompleta de Aracy'”, explica.

A produção de O Anjo de Hamburgo foi suspensa em razão da pandemia do novo coronavírus. Com direção artística de Jayme Monjardim, a série não tem data prevista para exibição.

“Aracy sempre foi uma pessoa extremamente discreta. Hoje, é nosso trabalho mostrar como, com coragem, determinação e um amor sem igual pelas pessoas, ela conseguiu mudar o destino de tanta gente”, afirma o diretor em nota emitida pela assessoria de comunicação da Globo.

Fonte: Portal Terra

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