A inexistência de uma política pública para o setor carcerário, a falta de definição de atribuições e responsabilidades dos órgãos ligados ao setor e um baixo nível de governança são os responsáveis pelos atrasos nas obras de construção de penitenciárias, pelo agravamento da superlotação das cadeias públicas e pela deterioração das unidades penais.
Esta é, em síntese, a conclusão do Relatório da Auditoria sobre o Sistema Carcerário do Estado do Paraná, recém-concluída pelo Tribunal de Contas do Estado do Paraná. O relatório, já disponível no portal do TCE-PR, documento propõe quase duas dezenas de recomendações ao governo estadual, Tribunal de Justiça e Defensoria Pública, com prazo máximo de execução de 12 meses. Proposta pelo presidente, conselheiro Durval Amaral, logo após sua posse, no ano passado, a auditoria integrou o Plano Anual de Fiscalização (PAF) de 2017 do TCE-PR.
“Diante de todo o quadro, evidencia-se um cenário de deficiência de planejamento, integração e articulação entre os diversos órgãos e poderes envolvidos na política pública do sistema carcerário, resultado em ações desconexas e reativas, incapazes de atender a totalidade da demanda social nesse âmbito do governo”, afirmam os técnicos do TCE-PR no Relatório de Auditoria.
O documento ressalta que, mesmo que se efetivasse a proposta do governo estadual de construir novas penitenciárias, “o seu resultado seria insuficiente para o equacionamento dos graves problemas vivenciados no setor, que se relacionam principalmente com os baixos níveis de governança e de gestão existentes no âmbito da área de segurança pública”.
SITUAÇÃO ENCONTRADA
A auditoria apontou que, conforme dados da Polícia Civil e do Departamento Penitenciário do Estado (Depen), em 10 de dezembro de 2017 havia 10.7295 presos em carceragens de delegacias e cadeias públicas no Estado ocupando 3.618 vagas, um déficit de 7.111 vagas, ou índice de superlotação de 196,5%. Ao mesmo tempo, o sistema penitenciário possuía, naquela data, 19.345 presos para 17.793 vagas, um déficit de 1.552 vagas, ou 8,7% de superlotação.
A situação estadual, segundo o relatório, mostra-se bastante peculiar, pois a maior parcela da superlotação existente é verificada nas carceragens de delegacias e cadeias públicas, contrariamente à situação nacional, em que a superlotação se concentra nos presídios. O documento lembra também que a utilização de delegacias de polícia para a custódia permanente de presos é uma prática antiga no Paraná.
Desde 2005, a proporção de presos em delegacias nunca foi inferior a 33%, ou um terço de toda a população carcerária do Estado, sendo que em dezembro de 2010, segundo dados do Infopen, tal estatística alcançou o ápice de 53%, quando o número de presos em delegacias superou o número de encarcerados no sistema prisional.
Outro aspecto relevante – acrescenta o Relatório de Auditoria – está relacionado aos índices de superlotação. Enquanto no sistema prisional o índice atingiu o máximo de 46% em 2005, apresentando média de 6%, nas carceragens de delegacias a média ficou em 124%, alcançando o máximo de 303% em 2006.
Se, por um lado, a situação particular do Paraná pode ser um reflexo da estratégia governamental de dispersão de presos em delegacias de polícia para evitar a ocorrência de rebeliões generalizadas no sistema prisional, por outro lado o aprisionamento em massa em carceragens de delegacias, locais sem estrutura física adequada, sem pessoal suficiente e sem oferecer qualquer possibilidade de ressocialização ao encarcerado, promovem a permanente violação de direitos fundamentais dos presos.
Segundo o relatório, o tratamento penal preconizado pela Lei de Execução Penal é praticamente inexistente nas carceragens de delegacias e cadeias públicas; e o Supremo Tribunal Federal (STF), por sua vez, em Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 3.916, já determinou que não compete à Polícia Civil a atividade penitenciária, o que está em desacordo com o ordenamento legal do país.
RECOMENDAÇÕES AO PODER EXECUTIVO
Considerando que em dezembro de 2017 1.689 pessoas condenadas cumpriam pena em carceragens de Delegacias de Polícia, representando 17% do total de encarcerados nesses estabelecimentos, o relatório recomenda que o governo estadual adote as medidas para manter os condenados em estabelecimento penal apropriado à sua condição.
O relatório aponta a existência de indefinição normativa quanto às competências da gestão plena e compartilhada das unidades carcerárias de delegacias e cadeias públicas, administradas pela Polícia Civil e pelo Depen. E recomenda que o Poder Executivo institua normativa que estabeleça de forma objetiva as competências de cada órgão na gestão das unidades carcerárias (delegacias e cadeias públicas).
O trabalho dos técnicos do TCE-PR também apontou a ausência de comunicação tempestiva pelo Depen ao juízo competente da totalidade dos fatos que possam dar causa à revogação da medida de monitoração eletrônica ou modificação de suas condições. Como efeito ocorre a perda de eficácia do monitoramento. A recomendação é para que o Executivo preveja, na contratação de prestação de serviço de monitoração eletrônica, a interoperabilidade entre os sistemas da empresa contratada e do Depen para dar cumprimento ao disposto no inciso V do artigo 5º do Decreto Estadual nº 12.015/14.
A inexistência de programas ou equipes multiprofissionais de acompanhamento à pessoa monitorada, bem como de estrutura adequada que a oriente no cumprimento de suas obrigações e a auxilie na sua reintegração social, também foi identificada pelos auditores. Assim, o TCE-PR recomenda que o Poder Executivo implemente programas e equipes multiprofissionais de acompanhamento à pessoa monitorada, bem como estabeleça estrutura adequada que a oriente no cumprimento de suas obrigações e a auxilie na sua reintegração social.
Outro achado da auditoria foi a ausência de formalização de política pública para o sistema carcerário, já que não se identifica a existência de lei ou norma equivalente que estabeleça uma política pública integrada entre os órgãos e poderes para o setor. O TCE-PR recomenda que o Poder Executivo formalize política pública para o sistema carcerário que atenda aos padrões de governança em políticas públicas.
Também foi identificada ausência de formalização de plano de ação para o sistema carcerário, bem como plano ou estudo visando à ampliação do número de vagas. Assim, a recomendação do Tribunal é de que o Poder Executivo realize estudo com essa finalidade, englobando aspectos da oferta e demanda por vagas na atualidade e no futuro.
A auditoria apontou também indefinição a respeito do modelo de gestão a ser utilizado nas novas unidades prisionais, bem como ausência de formalização de estudo sobre as possíveis modalidades de gestão. A recomendação é de que o Executivo realize estudo a fim de subsidiar a escolha pelo modelo de gestão a ser utilizado nas unidades prisionais atuais e em construção, avaliando a relação entre custo e benefício de cada um dos possíveis modelos.
Foram apontados também sucessivos descumprimentos do cronograma de execução das 20 obras de ampliação de vagas em unidades prisionais. O relatório do TCE-PR recomenda que o governo estadual apresente um cronograma factível de execução das obras, com critérios objetivos de avaliação e acompanhamento, bem como apure as responsabilidades pela inadequação dos projetos de engenharia das obras de ampliação de vagas do sistema carcerário e por eventuais prejuízos decorrentes do atraso nas obras.
Os auditores identificaram, também, que o número de vagas para presos provisórios nas obras de unidades prisionais previstas pelo Estado é inferior à necessidade atual. Se todas as vagas fossem disponibilizadas, restaria a necessidade de 1.325 vagas adicionais apenas para suprir a atual demanda. Já no regime fechado haveria um superávit de 40 vagas, para regime semiaberto um superávit de 399 vagas e para presos provisórios, um déficit de 1.764 vagas, aponta o relatório. O TCE-PR recomenda que o Executivo readeque o planejamento de vagas a serem disponibilizadas no sistema carcerário, a fim de suprir o déficit que já se apresenta.
Finalmente, foi identificada a impossibilidade de aferição da despesa do sistema carcerário em sua totalidade e por unidade carcerária, bem como o custo por preso. Os auditores apontam que não há segregação de valores destinados às atividades relativas ao sistema carcerário nos demonstrativos de despesa da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Administração Penitenciária (Sesp) e da Polícia Civil, nem mesmo mecanismos de apuração do custo do preso nas carceragens de delegacias e cadeias públicas.
A recomendação é para que o Executivo promova a aferição da despesa do sistema carcerário em sua totalidade e por unidade carcerária, bem como do custo por preso nas unidades carcerárias da Polícia Civil e do Depen, nos moldes da Resolução nº 6/2012 do CNPCP.
RECOMENDAÇÕES AO TJ
Cinco recomendações estão sendo feitas pelo TCE-PR ao Tribunal de Justiça do Paraná, com base nos elementos que foram levantados. O relatório recomenda que o TJ-PR institua mecanismo para fiscalizar e monitorar a realização de audiência de custódia para todos os casos de prisão em flagrante não abrangidos pelas exceções previstas na IN nº 03/16 da Corregedoria-Geral de Justiça do TJ-PR; que institua mecanismo para fiscalizar e monitorar o prazo de realização de audiências de custódia, a fim de assegurar a sua consecução em até 24 horas da comunicação do flagrante, ou até o primeiro dia útil seguinte, se comunicado o flagrante em feriado ou final de semana; que se estabeleça métricas de aferição do cumprimento de prazos pelas partes envolvidas nos processos penais, disponibilizando concomitantemente tais resultados aos magistrados, a fim de assegurar o controle e o cumprimento dos prazos pelos envolvidos.
E ainda: que o TJ-PR institua mecanismos de controle que informem ao magistrado, de forma consolidada, a duração da prisão provisória dos encarcerados sob sua jurisdição em comparação com sua pena cominada abstratamente, de forma a garantir que não haja excesso de prisão provisória. Outra recomendação é de que o Judiciário fiscalize e monitore a tempestividade das análises de progressões efetuadas, em especial aquelas cujos requisitos temporais para progressão do regime de cumprimento da pena estejam atendidos.
RECOMENDAÇÕES À DEFENSORIA PÚBLICA
Ao constatar o desempenho da prestação de serviços de assistência jurídica pelo Estado ao preso inferior ao desempenho da advocacia particular, o Relatório de Auditoria do TCE-PR recomenda que o Poder Executivo institua, por meio da Procuradoria-Geral do Estado, mecanismos de monitoramento da tempestividade da instauração de incidentes de progressões pela Advocacia Dativa com relação ao adimplemento dos requisitos temporais para progressão do regime de cumprimento da pena.
Outra recomendação é a implantação de mecanismos de avaliação e monitoramento do custo e do desempenho operacional da Advocacia Dativa, a fim de elevar seus indicadores de eficácia operacional, avaliando sua atuação em termos de custo e benefício comparativamente à Defensoria Pública; e que a instituição institua mecanismos de avaliação e monitoramento de seu custo e desempenho operacional, a fim de elevar seus indicadores de eficácia operacional.
Os técnicos também identificaram uma estrutura insuficiente da Defensoria Pública para atender à demanda por serviços de assistência jurídica aos presos. Em dezembro de 2017, havia 99 cargos de defensores públicos providos, número que representa somente 19% do efetivo ideal, de 526 defensores. Por isso, o relatório recomenda que o Poder Executivo e a Defensoria Pública estabeleçam uma metodologia comum para a aferição do quantitativo de defensores públicos necessários para a assistência jurídica da totalidade dos encarcerados do Estado, garantindo os meios para o provimento de seu quadro de pessoal.
OUTRAS RECOMENDAÇÕES
A Auditoria do Sistema Carcerário constatou situações relativas à ausência de informações sistematizadas com relação às autoridades que efetuaram as prisões dos encarcerados em delegacias. A recomendação é de que o Departamento de Polícia Civil colete e sistematize esses dados. Verificou-se ainda uma recorrência marcante de prisões de jovens entre 20 e 29 anos (56%), do sexo masculino (93%), tendo como o flagrante delito (50%) o motivo predominante da prisão. Depois aparecem crimes relacionados ao tráfico de drogas (27%) e roubo (19%), enquanto os homicídios (simples e qualificado) totalizam 10% dos motivos de encarceramento.
A auditoria considera que “a situação pode ser consequência direta da ausência de oportunidades econômicas e sociais de um segmento vulnerabilizado da população”, recomendando ao Governo do Estado o desenvolvimento e monitoramento de políticas públicas nas áreas de educação, saúde e assistência social que tenham enfoque no grupo identificado pela auditoria como de perfil recorrente de encarcerados.
EQUIPE
A Auditoria do Sistema Carcerário do Paraná foi realizada entre 18 de maio de 2017 e o último dia 15 de março. A equipe de auditores foi integrada pelos servidores Andressa Ekermann de Cristo Silvestrin, Antônio Cláudio Andrade Narel, Daniel Adzgauskas Montanher, Edson Custódio, Guilherme Luiz Sartori, João Felipe Quincozes do Amaral (coordenador), Leandro Henrique Cascaldi Garcia, Luiz Antônio Paravato Lessa e Rosângela do Rocio Cunha Zambruno.