Coração do Contestado – o reconhecimento e os desafios de um município catarinense, palco central da Guerra do Contestado

Enviada por Nilson Cesar Fraga - 24/01/2018

Em 2018, a Assembleia Legislativa do Estado de Santa Catarina, por meio do Projeto de Lei 108/2017, reconheceu o município de Lebon Régis como o Coração do Contestado e, a 10 de janeiro de 2018, o Governador do Estado sancionou a Lei 17.466, efetivando o município como o Coração do Contestado, abrindo, dessa forma, grandes desafios futuros para os poderes públicos e a sociedade lebon-regense, desafios que se estendem desde a herança sociocultural cabocla do Contestado até os baixos índices de desenvolvimento humano, que colocam o município entre os mais carentes do estado.

Mas, tal reconhecimento, abriu numerosas portas para o rompimento do subdesenvolvimento municipal, desde que, a partir de então, se planeje o futuro baseado na sua identidade e capacidade inventiva com base local e regional.

Desde 2015, em Lebon Régis, algumas iniciativas vêm sendo tomadas para diminuir o papel da ideia de inferioridade cabocla em relação aos demais habitantes do estado, sobretudo em analogia aos que vivem em regiões de colonização europeia, que acabaram se destacando em níveis de desenvolvimento social e econômico. Dentre tais iniciativas, há as leis estaduais que estabelecem a bandeira do Contestado como símbolo regional catarinense e a oficialização da semana do Contestado no calendário estadual. Tais legislações, que tentam dar visibilidade e dignidade ao mundo caboclo e à Guerra do Contestado são parte de ações de rompimento da invisibilidade cabocla que ocorrem em níveis municipais, com semanas cívicas e outras atividades, mas, mesmo assim, o Contestado ainda está encoberto pelas brumas da invisibilidade, pois os investimentos culturais públicos ainda são insignificantes. A Lei Nº 17.466 amplia as possibilidades do desenvolvimento futuro lebon-regense, pois o liga às legislações mencionadas – Lei nº 12.060, de 18 de dezembro de 2001, que reconhece a bandeira do Contestado como símbolo estadual, e a Lei nº 12.143, de 05 de abril de 2002, que institui a Semana do Contestado, de 20 a 27 de outubro de cada ano –, permitindo inserir, livremente, atividades festivas e cívicas alusivas ao povo caboclo e à Guerra do Contestado.

Mas resta, ainda, a imprecisão oficial dos fatos e atos que marcaram os quatro anos de guerra civil do Contestado. A falta de respeito com os seres humanos desta região, pelo próprio Estado, nos induz ao pensamento de que esta história está, em grande parte, até hoje oculta, silenciada e invisível, mas vem sendo anualmente repensada em municípios como o de Lebon Régis.

Com uma história de ocupação e formação socioespacial relativamente antiga, as terras do atual município de Lebon Régis foram ocupadas por volta de 1895, quando começaram a chegar aos campos e às matas do atual município os primeiros moradores vindos de várias comunidades catarinenses e paranaenses – aqui não levando em conta os milhares de anos de ocupação indígena na região. Em 1903, foi criado o Distrito de São Sebastião da Boa Vista. Em 1938, o distrito foi elevado à categoria de vila, com o nome de Caraguatá e, em 1950, passou a ser chamado de São Sebastião do Sul. Ao mesmo tempo, na parte sul, na região conhecida pelos antigos como Trombudo, formou-se outro núcleo que levou os nomes de Salto do Rio dos Patos, Fazenda do Salto e, depois, Santo Antônio do Trombudo – na junção do Trombudo com o santo que segue como padroeiro da paróquia até os dias atuais. Foi esse último um núcleo mais fácil de progredir, pois era um local de passagem de tropeiros que faziam os caminhos Curitibanos-Caçador. O arraial de Santo Antônio do Trombudo tornou-se distrito em 1934. Em julho do mesmo ano passou a chamar-se Lebon Régis.

Em 1938, o distrito de Lebon Régis passou à categoria de vila. Esta vila foi desenvolvendo-se e a população aumentou, chamando a atenção do governo, que, em 19 de dezembro de 1958, juntou os distritos de São Sebastião do Sul e Lebon Régis, criando o município de Lebon Régis. Em janeiro de 1959, o então governador Irineu Bornhausen instalou o município de Lebon Régis.

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O nome do município foi uma homenagem ao catarinense general Gustavo Lebon Régis, que, por ocasião da Campanha do Contestado, entre 1912 e 1916, era secretário geral do Estado de Santa Catarina e traçou o primeiro ataque a Taquaruçu, um dos maiores redutos de caboclos do Contestado. O território, que hoje forma o município, foi cenário de lutas e combates sangrentos entre os caboclos e as forças militares da época. Muitas foram as consequências da Guerra do Contestado para o atual território municipal. As pessoas mais idosas, ainda hoje, assim como seus descendentes, narram as aventuras e peripécias dos monges João Maria, José Maria, da líder Maria Rosa e do último comandante caboclo, Adeodato.

As ações que culminaram com o reconhecimento municipal como o Coração do Contestado se iniciaram em 2015, pela Associação Cultural Coração do Contestado, de Lebon Régis – SC e pelo Observatório da Região e da Guerra do Contestado, da Universidade Estadual de Londrina, PR, com apoio da Paróquia Santo Antônio de Lebon Régis, Cavaleiros do Contestado de Lebon Régis e da Prefeitura Municipal que, por meio de numerosos trabalhos de campo, começaram a inventariar e mapear os sítios históricos ligados à cultura cabocla e à Guerra do Contestado no território lebon-regense.

No período de 2015 a 2017, foram percorridos mais de quatro mil quilômetros pelo interior do município, para reconhecimento e fotografação dos locais históricos, que são muitos, a ponto de exigir dos grupos uma forma de divulgá-los. Das numerosas reuniões dos dois grupos, nasceu a Primeira Semana do Contestado,  de 14 a 18 de julho de 2015, cuja temática envolvia o Centenário da Guerra Contestado em Lebon Régis: Terra Cabocla – a Cidade, o Campo, a Ciência, a Arte e a Luta Secular; a Segunda Semana do Contestado, de 16 a 20 de outubro de 2016, trazendo a discussão do Centenário do Acordo de Limites Imposto ao Final da Guerra do Contestado e seus reflexos em Lebon Régis; e a Terceira Semana do Contestado, de 17 a 20 de agosto de 2017, quando foi discutido o Centenário do Massacre Invisível – 100 Anos de Luta e Resistência Cabocla, o Sonho Caboclo não se apaga. Ainda, no dia 12 de março de 2016, foi realizado um evento sobre os 100 anos da Guerra do Contestado, na localidade de Serra da Boa Esperança, em Lebon Régis, evento esse chamado Nossa Serra, Nossa Guerra, Nossa Luta.

A Associação Cultural Coração do Contestado e o Observatório da Região e da Guerra do Contestado propuseram e foi aprovada pela Câmara de Vereadores e sancionada pelo prefeito municipal a Lei nº 1553/2016, 17 de agosto de 2016, que dispõe sobre a preservação do patrimônio cultural e natural do município de Lebon Régis, criando o conselho e o fundo municipal do patrimônio histórico, artístico e natural, sendo essa uma grande vitória para se salvaguardar o patrimônio municipal, sobretudo aquele voltado à cultura cabocla e à Guerra do Contestado.

No dia 13 de março de 2016, integrantes dos dois grupos entregaram as melhorias e a restauração do Crematório de Cadáveres de Perdizinhas, para a comunidade local, com uma missa de recomendação das almas, descerramento de placa e homenagem à família proprietária das terras onde se encontra o crematório secular usado pelo Exército brasileiro para a eliminação dos cadáveres de caboclos e caboclas do Contestado, abatidos durante os anos finais da Guerra do Contestado. Além desse sítio histórico, a Associação Cultural Coração do Contestado conseguiu cercar e proteger a fonte d´água de São João Maria, na Serra da Boa Esperança, assim como um dos cepos da igreja histórica bombardeada e queimada durante o período da guerra, na mesma localidade.

A Associação Cultural Coração do Contestado, o Observatório da Região e da Guerra do Contestado e os Cavaleiros do Contestado conseguiram identificar e inventariar para futuras demarcações os cemitérios caboclos de Perdizinhas, Caçadorzinho, Santa Maria, São Gabriel, São Miguel, Rio Bonito, Pastagem, assim como a localização de redutos, tais como Caraguatá, São Miguel, Caçador Grande e algumas trincheiras da defesa cabocla e da legalista.

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Alinhada ao projeto de reconhecimento de Lebon Régis como o Coração do Contestado, está a proposta de planejamento turístico para o município, que já envolveu o inventário de alguns dos campos de batalhas, redutos históricos, espaços para criação de um museu, sítios arqueológicos, históricos, geográficos e culturais, cemitérios, crematórios de cadáveres etc., além daqueles ligados às paisagens: campos, floresta de araucárias e vales, cânions, cachoeiras etc. Apenas o Trombudo (Lebon Régis) apresenta dezenas de possíveis atrativos religiosos, culturais, ambientais, históricos e a gastronomia cabocla, que precisam fazer parte do desenvolvimento futuro do município.

Além dos bens materiais que buscamos salvaguardar na região do Contestado, o Observatório da Região e da Guerra do Contestado, a Associação Cultural Coração do Contestado, a Prefeitura e a Câmara de Lebon Régis (Trombudo do Contestado) e a Comunidade Escolar realizam as mencionadas Semanas do Contestado, além de outros eventos e atividades no município, visando valorizar a cultura cabocla local e desencadear o amor pelas coisas dessa terra, pois, a partir do momento em que as pessoas tiverem orgulho da sua história e do seu pequeno pedaço de terra nesse mundo, elas estarão preparadas para receber milhares de pessoas do Brasil e até mesmo do mundo para reconhecerem a importância das coisas desse território. Então, é preciso seguir trabalhando e sonhando com o futuro das pessoas daqui do Coração do Contestado!

A partir das vitórias destes anos de trabalhos realizados pelos grupos de atuação das coisas do Contestado e caboclas em Lebon Régis, em uma reunião com os grupos envolvidos na causa da cultura cabocla, na Casa Paroquial, na noite de 28 de abril de 2016, fiz a proposta de edificação de um monumento a São João Maria, a qual foi aceita por todos e todas que estavam presentes. A partir daquele dia, o grupo principal, denominado Grupo de Ação de São João Maria, passou a chamar-se Associação Cultural Coração do Contestado, agora institucionalizado, permitindo maior capacidade de atuação sobre as ações desenvolvidas no município.

Em 17 de agosto de 2017, durante a III Semana do Contestado, fiz a exposição pública sobre o Complexo Turístico, Cultural e Ambiental do Monge João Maria, cujos traços de planejamento iniciais mínimos foram discutidos com a arquiteta Márcia E. Schüler. Esses devem envolver os seguintes critérios e outros detalhes:

– ele seguirá princípios de sustentabilidade socioambiental, como pregava o próprio monge;

– iluminação por meio do Programa de Geração de Energia Fotovoltaica da CELESC;

– definição do local do complexo (morros próximos ao centro da cidade);

– definição da proporção e tamanho da estátua do monge (entre 40 e 60 metros);

– acessos (como chegar, identificação visual, automóveis, ônibus, bicicletas, pedestres, acessibilidade etc.);

– pedestres em volume concentrado (acessibilidade considerando uma romaria anual);

– entorno – criar uma lei de proteção do entorno do Complexo Turístico, preservando a paisagem;

– valorização das águas (ponto forte da valorização ao monge), cedro, vassourinhas e ipês amarelos;

– captação das águas da chuva para a manutenção do complexo;

– estacionamento e áreas de manobras para os ônibus;

– imagem do monge sem acesso ao interior, instalada sobre um mirante da paisagem e da cidade;

– a imagem/estátua do monge será em pé, para gerar maior impacto local e regional e visibilidade, sem achatamento;

– a base/mirante terá dois pisos/níveis utilizáveis, com centro de atendimento ao turista, banheiros acessíveis, venda de comidas e bebidas não alcoólicas, lembrancinhas, administração, guias turísticos de atendimento ao público, sala de/para exposições e eventos, museu do monge, capela, sala de ex-votos, sala de apoio, almoxarifado, manutenção e primeiros socorros – essa base será circulada com uma ampla rampa, com descansos etc.;

– datas de grandes atividades no Complexo Turístico: dia 17 de janeiro, Dia de Santo Antão – considerado como o pai de todos os monges na historiografia católica –, e na semana do dia 20 de outubro, quando se rememora as datas iniciais e finais da Guerra do Contestado em todo o estado de Santa Catarina;

– depois da implantação ou mesmo antes, há que se criar um Plano Municipal de Desenvolvimento Turístico relacionado ao monge, já pensando no artesanato voltado a esse fim, gerando, desde o início, trabalho e renda para os munícipes, sobretudo para as mulheres e os jovens.

O projeto envolve ousadia e sonho, por se tratar de um plano para o Contestado, voltado ao desenvolvimento local/regional e sustentável, no Coração do Contestado (Lebon Régis) – um projeto (de) futuro para geração de renda, trabalho e riqueza para a população municipal.

Todos os trabalhos e projetos expostos até aqui, que resumem as atividades da Associação Cultural Coração do Contestado e do Observatório da Região e da Guerra do Contestado, se consolidam e se ampliam com o reconhecimento do município em nível estadual, como o Coração do Contestado, pois esse título conquistado pelos lebon-regenses coloca o projeto turístico no centro dos debates futuros.

Mas os desafios são maiores do que a comemoração de tal reconhecimento; dentre eles, o próprio nome do município, nome de um dos responsáveis pelos ataques e mortes ocorridos no solo do município que hoje leva sua indigesta designação, o catarinense Lebon Régis, cuja biografia começa a ser construída já na Guerra Civil – a dita Revolução Federalista (1893-1895) –, quando, em 1894, como alferes-aluno da Escola Militar, tomou parte no combate à Revolução Federalista na cidade de Lapa (PR), manejando um canhão Krupp, quando acabou saindo de combate gravemente ferido, sendo ele, um pica-pau governista-florianista – mais um motivo para se negar o nome dele, como designação do município.

Esse coronel político barriga verde nunca esteve nas terras do Trombudo, ou mesmo em Taquarussu, ou na Serra da Boa Esperança, nem mesmo em Perdizinhas, onde sobre suas ordens vindas da capital do Estado, milhares de caboclos e caboclas foram mortos e calcinados pelas ações legalistas, tendo ele e outros militares daquele período como mandantes. Há que se pensar que, com seus altos cargos de importância nos governos estaduais, podiam, muito bem, ter decidido pelo diálogo, por ações pacifistas, mas deliberaram pelo derramamento do sangue caboclo na Serra Acima. Desta forma, se torna impossível aceitar que o Trombudo do Contestado, chão caboclo de resistência secular, homenageie seu algoz; impossível que as pessoas de lá, na atualidade, tenham de citar o nome infame desse homem corresponsável pela morte de milhares de antepassados do povo do Trombudo, cotidianamente, ou na placa dos seus automóveis, nas suas carteiras de identidade, nas notas fiscais, nas placas de trânsito ou em tantas outras formas de objetos e documentos que trazem o nome de um dos políticos responsáveis pelo genocídio realizado nas terras caboclas. Essa é uma das frentes de batalhas futuras dos grupos de atuação socioambiental e cultural no município – lutar para que o nome do município seja mudado, para que volte a ter o digno nome de Trombudo, ou Trombudo do Contestado, para marcar ainda mais a importância do Coração do Contestado no contexto regional brasileiro.

Qual seria o preço de tal ação? Nenhum, apenas a vontade e a coragem popular de fazer justiça à luta dos seus antepassados, que guerrearam pelo direito à terra e à vida com justiça e pela felicidade. Se houver algum custo, que pague o estado de Santa Catarina, pois vem dele essa humilhação de seis décadas de emancipação político-administrativa carregando o nome do coronel por mim, cada vez mais inominável.

Como o Coração do Contestado promoverá sua Quarta Semana do Contestado em 2018, ano dos 60 anos da criação do município, esse terá de ser o tema central das discussões e atividades do evento – discutir, exumar a figura histórica de Lebon Régis, avaliar e propor à Câmara de Vereadores, depois de ampla discussão com a sociedade municipal, um plebiscito para a mudança do nome do município, libertando, para sempre, o peso da injustiça dos que carregam diuturnamente a referência de alguém que, na história, possui as mãos sujas com o sangue do holocausto caboclo.

Que o Coração do Contestado seja o título estadual do município do Trombudo do Contestado. Que o povo caboclo, digno e hospitaleiro trombudense, consiga se libertar de Lebon Régis, que não seja uma Florianópolis, que nunca teve a dignidade de se libertar do tirano Floriano Peixoto, aliás, tirano por quem Lebon Régis lutou para consolidar essa república corrupta, centralizadora e opressora em que vivemos.

São muitos os desafios trazidos com o título de Coração do Contestado para o Trombudo do Contestado, mas o povo caboclo é bom de briga e não se deixará ser humilhado por mais 60 anos. Mas há outros desafios para os 12.133 habitantes do município, sobretudo pelo fato de 37,3% deles ainda viverem com meio salário mínimo. Há que se planejar o futuro dessa população, gerando renda, trabalho e riqueza para todos e todas, permitindo aos trombudenses lutar com os mesmos sonhos dos seus antepassados, lutar pela vida com felicidade, lutar por uma boa educação escolar, por uma saúde pública digna, pelo ensino técnico e superior com maior alcance.

Lutar contra a Lebon Régis e construir uma Trombudo do Contestado com mais dignidade!

Viva o Povo Caboclo do Trombudo do Contestado!

Viva o Povo Caboclo do Coração do Contestado!

Lutemos juntos, como as irmandades caboclas!

 

Nilson Cesar Fraga
Pesquisador do CNPq
Professor na Universidade Estadual de Londrina
Coordenador do Observatório da Região e da Guerra do Contestado

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